Fundo do baú: Miguelinho, um Gaúcho Tijuquense

Miguel Leal era conhecido por todos como “Miguelinho”, e é pai do ex-deputado federal por Santa Catarina, Leoberto Leal. Ele era dono do Casarão onde hoje fica a Câmara de Vereadores de Tijucas

Fundo do baú: Miguelinho, um Gaúcho Tijuquense

Acervo / Jornal Razão

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Gabriel Leal de Souza Nunes, foi quem construiu a bela casa em estilo Português clássico, por volta dos idos de 1875, no espaço onde hoje se situa a Câmara Municipal de Vereadores de Tijucas.

Mais tarde, seu filho Miguel Leal a recebeu de herança juntamente com mais um de seus muitos irmãos, e os demais filhos receberam de herança as terras do outro lado do Rio Tijucas, rumo a Casa Branca, e no Moura, hoje pertencente a Canelinha.

Miguel Leal era conhecido por todos como “Miguelinho”, e é pai do ex-deputado federal por Santa Catarina, Leoberto Leal.

Seu irmão, que recebeu de herança esta casa, juntamente com Miguel Leal, resolveu vender sua parte da herança para o próprio irmão Miguelinho, ao qual Miguel ali morou por alguns bons anos, desfrutando daquela bela e confortável casa, com sua enorme e diversificada chácara onde antigas frutas que, outrora eram do nosso convívio, raramente se veem hoje em dia, como: cambucá, fruta de conde e outras anonáceas, jambo, caqui, cajá, cerejeiras, côco indaiá, sapota, grumixama, bacupari, pêssego italiano, etc.

Após cerca de 15 anos ali residindo, Miguel Leal não passava por bons momentos financeiros, e resolveu então se desfazer da casa que ali nasceu e se criou juntamente com seus irmãos. Porém, o preço por ele pedido era muito elevado e até merecido pelo conforto da casa para a época, além da excelente qualidade da construção com madeiras de lei e vastas varandas laterais. A casa era muito bem localizada, no coração da cidade, defronte a maior via pluvial da região e um dos portos mais renomados do estado.

Compradores em potencial apareciam semanalmente, porém, nunca se chegava a soma estipulada por Miguelinho.

Nesta época, por volta de 1900, o Governo do estado, na tentativa de atender ao pranteado pleito do povo e dos políticos locais, no sentido de construir e instalar aqui em Tijucas uma excelente e forte escola pública de primeiro a quarto ano primário, resolveu comprar a famosa residência de Miguelinho pelo preço estipulado.

Nesta época, a residência não tinha o tamanho da atual construção, era, portanto, uma casa familiar considerada grande para a época, mas seu comprimento era até onde vai seu primeiro lance de área hoje ainda visível, uns 18 metros aproximadamente de fundos.

Porém, para atender a grande demanda de alunos de toda a grande região de Tijucas que outrora era muito mais territorialmente que hoje, onde crianças dos mais longínquos rincões do enorme município. Em Tijucas, ficavam hospedados em casas de parentes, amigos dos pais ou na qualidade de hóspedes pagos por seus pais que faziam este esforço supremo, na busca de uma melhor educação para seus queridos filhos.

Assim sendo, era grande o número de alunos e aumentava gradativamente ano a ano. O governo teve que aumentar a construção, emendando a parte de trás que tomou o espaço das já mencionadas frutas da antiga chácara, onde talvez em algum outro local do município, ou em cidades vizinhas, Deus fez germinar algumas sementes onde ainda assim possa haver árvores remanescentes daquelas saudosas.

Porém, o que me motivou a rabiscar estas poucas e simples linhas, foi um fato interessante e até por demais engraçado a respeito deste meu distante primo Miguel Leal (Miguelinho).

Trata-se que quando Miguelinho era bem moço, resolveu este fazer a vida numa cidade no interior do Sul do Rio Grande do Sul, onde viveu por cerca de três anos, aproximadamente. Em meio a vida campeira, onde a lida com o gado exigia dias e dias a cavalo de campo a fora, onde dormiam em cima dos pelegos e cochonil e cobriam-se com o tradicional pala ou ponche, também de lã de ovelha, a qual os gaúchos quando de partida das sedes das fazendas para o campo aberto, formavam um pequeno grupo de quatro, cinco ou seis laçadores para curar animais doentes, com ferimentos (bicheiras), apartações dos bezerros, castrações dos novilhos, etc.

Assim sendo, levavam consigo duas ou três mulas carregadas com mantimentos, medicamentos, sal para o gado comer nos saleiros espalhados pelos campos e uma boa barraca para passar aquelas semanadas no campo aberto. E assim Miguelinho foi passando naquelas plagas estas temporadas gauchescas e aprendendo a lida com o gado, também ficando mais experiente para a vida.

Após cerca de três anos de ausência, sentindo saudade da família, Miguelinho resolveu voltar para Tijucas e para a casa paterna, e assim rever parentes e muitos amigos que já há muito não dava notícias. Muitos perguntavam constantemente para o velho Gabriel Leal:

“Seu Gabriel, e o Miguelinho? Onde anda?

O velho respondia:

“Há meu filho, o Miguelinho foi pro Rio Grande do Sul e nunca mais apareceu”.

Desta forma, a chegada de Miguelinho foi muito festejada. Onde diversos abraços festivos dos parentes e amigos eram a toda hora e a todo momento. A mãe, Dona Izabel (Izabel Venâncio da Silva), abraçou-se com o filho e gritava entre soluços “meu filho voltou, meu filho querido voltou. Graças a Deus”.

Pois Miguelinho diante desta jornada sulina foi extremamente cruel e ingrato. Na verdade, sequer uma cartinha aos velhos pais enviou. Na plenitude de sua juventude encontrou nesta longa jornada a oportunidade de conseguir certa “independência” familiar e pronto para o mundo e para a vida. Para o que der e vier!

Embora tenha teve uma infância e adolescência sadias, onde a educação e o conforto eram constantes, acompanhados de extremo carinho, enfim, quase nada lhe faltava.

Entre visitas e abraços, chegou o meio dia e sua mãe fez um almoço daqueles fartos e requintados, com perus, galinhas, carnes bovinas e suínas, bebidas... tudo o que um antigo bom almoço exigia, em uma longa mesa, com toalhas de linho.

Miguelinho, sempre abraçando a todos e agradecendo a presença dos amigos, respondendo a todos e diversas indagações sobre sua trajetória pelo sul do Brasil, porém, sempre contando vantagens. Assim foi também durante aquele farto café colonial servido por volta das 16h. Onde o queijo e a pura manteiga eram aos montes servidos em cima da grande mesa, com aqueles pães caseiros enormes feitos pelas empregadas que acompanhavam a família desde o passado mais distante. O requinte do jantar e a presença de parentes e amigos não ficou nada a dever em comparação ao almoço: “era só alegria”.

Assim sendo, após o jantar os amigos foram se despedindo, e logo em seguida também os parentes, até mesmo pelo adiantado da hora, que para aquela época 22h já era tarde demais. E o dia foi muito festivo, porém exaustivo, até mesmo porque estava muito frio, e segundo o meu avô Adhemar Carvalho, era mês de julho e justamente começava a ameaçar uma dessas raras trovoadas de inverno que são extremamente temíveis e causadoras de muitos danos materiais. Ainda bem que elas são raras, e geralmente começam a roncar pelo lado oeste (terra), elas vêm com o famoso terral conhecido pelos antigos tijuquenses por “rapa canela”. No dia seguinte, faz muito frio e geada. Nestes entremeios, a família toda do velho Gabriel se preparava para dormir, e a matriarca foi logo preparar o quarto para o filho querido, recém-chegado. E quando a cama com fronhas e lençóis limpos e cheirosos estava pronta, todos viram Miguelinho até que um pouco despeitado, mexendo arrogantemente em suas tralhas trazidas do sul e assim pegando uma velha e média barraca e abrindo a porta dos fundos e dirigindo-se para a chácara para montar sua barraca embaixo de um antiguíssimo pé de caramanchão.

Nisso, o velho Gabriel lhe pergunta:

“Miguelinho, o que vás fazer, rapaz? Onde vás?

Miguel respondeu:

“Ora pai, o que vou fazer! Vou armar a barraca para dormir lá no fim da chácara, embaixo do caramanchão, pois já é tarde”.

Diz o velho Gabriel:

“Ora, meu filho! Tua mãe já arrumou o teu quarto, está tudo pronto e limpo, como é que vás fazer uma desfeita desta pra nós Miguelinho??”

Miguelinho respondeu:

“Ora pai, não se preocupe não. Eu não durmo mais em cama, já me acostumei a dormir nos campos do Rio Grande em barracas e agora né pai, eu sou um gaúcho. Cama para mim faz parte do passado. Não é que eu queira fazer desfeita para vocês, é que eu não me acostumo mais a dormir em cama dentro de quarto. Lá no Rio Grande muita gente vive assim nos campos em serviço, e eu me acostumei.

E o velho Gabriel continuou:

“Mas, Miguelinho, então pelo menos hoje, meu filho, fique em casa! Ora filho, está roncando um trovoadão aí para cima que é coisa séria. Meu filho é até um perigo ficar na rua numa noite assim, filho. E fica até chato se amanhã de manhã alguém te ver dormindo numa barraca! O que não vão dizer de todos nós filho?”.

Miguelinho diz:

“Não, não pai! Não se preocupe. Pode deixar que eu estou muito bem.

Nesta altura, entrou na conversa a mãe, Dona Izabel:

“Meu filho, pelo amor de Deus, estas trovoadas de inverno são terríveis, não deixe a tua mãe com o coração na mão, meu filho”.

Responde Miguelinho:

“Ora, mamãe. Essas trovoadinhas que dá aqui em Tijucas, isso para nós gaúchos é como se fosse um aguaceirinho. Isto não é nada, mamãe. Ora, ora, vocês tem medo de tudo!”.

Passado mais de uma hora de insistência dos pais e resistência por parte de Miguelinho, finalmente o velho Gabriel meio desolado com a atitude do filho recém-chegado resolveu dar boa noite, já meio aborrecido, com o filho, e foi dormir com sua velha esposa. Miguelinho terminou de montar a barraca e também foi dormir. Haja visto que o dia foi exaustivo, assim sendo, lá pela meia-noite os relâmpagos e trovões eram dos mais aterrorizadores e temíveis já vistos.

O vento já soprava forte nas poucas ruas da cidade, nas árvores seus galhos retorciam e quebravam de todos os tamanhos e formas, sendo que a mãe de Miguelinho estava dentro de casa extremamente sobressalta.

E o velho Gabriel dizia:

“Deixa mulher, deixa aquele palhaço pegar uma boa enxurrada para aprender a deixar de ser bobo. Foi lá pro Rio Grande e agora veio com essa mania de barraca. Deixa ele lá, deixa pegar chuva no lombo. Ele tem que aprender, tem que levar uma esfrega boa”.

A velha esposa implorava: “pelo amor de Deus, Gabriel, bota este filho pra dentro de casa", porque neste momento, Miguelinho já se encontrava há alguns minutos batendo na porta e gritando:

“O paiê, o pai, abre a porta, o manhê, o mãe, manhê abre a porta", dando socos na porta, pensando que os pais não estavam escutando em meio ao dilúvio. E a velha Izabel dizia: “Se tu não abrires a porta, eu vou”.

Gabriel respondia: “Olha, se tú fores abrir a porta para este palhaço, eu te empurro para fora e fica vocês dois na rua. Deixa que quando passar esta trovoada, nós colocamos ele pra dentro de casa. Aí sim, tú das um café bem quente com uma colher de cachaça para esse bobo”.

E o desespero de Miguelinho continuava bem alto: “O manhê abre a porta, paiê o pai" e puft, puft na porta.

Gabriel dizia: “Deixa assim que ele aprende, pois ele é gaúcho? Diz que lá pro sul trovoada é café pequeno”.

Nesta altura, já há muito a barraca de de Miguelinho o vento forte levou pelos ares, os pelegos e o poncho estavam todos encharcados. E família dentro de casa estava acordada em polvorosa, porém, emudecidos pelo rigor do velho Gabriel.

Lá pelas duas horas da madrugada, quando apenas restavam poucos chuviscos e fraco vento, Gabriel autorizou a esposa a abrir a porta. Assim que ela abriu, Miguelinho entrou rápido todo molhado, parecia um pinto quando pega chuva. Miguelinho tiritava de frio, batia queixo igual uma capivara. As mãos e os punhos estavam visivelmente vermelhos e até sangrando um pouco de tanto bater na porta durante o terrível temporal, que para ele foi uma tormenta.

O velho Gabriel não deixou de dizer: “Olha, olha! O Gaúcho pelo jeito não se deu muito bem aqui por Santa Catarina, pois treme igual vara verde”.

Assim, Miguelinho nunca mais quis saber de ver barraca em sua frente, e serviu de piadinhas no seio da família por muitas e muitas décadas. Dizem até que quando chegava cigano na cidade, alguns da família faziam brincadeiras com Miguelinho dizendo:

“Miguelinho, chegou uma ciganada aí, tem cada barraca bonita que só vendo. Vamos lá ver”?

E Miguelinho respondia apenas com um sorrisinho.

Este fato foi narrado totalmente pelo meu avô, Adhemar Leal Carvalho, conhecido por todos por Adhemar das Cobras ao qual sua mãe a ele contava. Ele é filho de Davina Lúcia Leal Carvalho, conhecida por Dona Vina e esta Vó Vina era prima irmã do tal Miguelinho.

Adhemar Carvalho nasceu em Tijucas em 25/08/1900 e após a venda da casa do velho tio Gabriel, Adhemar estudou nesta casa que passou a chamar-se Grupo Escolar Cruz e Souza, ao qual bem mais tarde transformou-se em Fórum da Comarca de Tijucas.

Durante uns três anos da administração 93/96, funcionou como passo municipal e atualmente está ali instalada a Câmara Municipal de Vereadores de Tijucas.

Este texto é um resgate histórico de Edson Carvalho Bayer, neto de Adhemar das Cobras e figura que narrou este conto

Fonte: Lorran Barentin / Jornal Razão